sexta-feira, 29 de abril de 2016

Parecer dos professores Gustavo Ferreira Santos, Marcelo Labanca e João Paulo Allain Teixeira sobre o Impeachmnet da Presidente Dilma Roussef




EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
- A natureza política do processo por crime de responsabilidade praticado pelo Presidente da República não resulta um cheque em branco ao Congresso, que deve exercer tal poder, como todos os demais poderes definidos em um Estado Democrático de Direito, nos limites traçados pela Constituição.
- Apenas podem ser caracterizados como crimes de responsabilidade atos dolosos diretamente atribuíveis ao Presidente da República.
- É incompatível com a Constituição a condenação, no exercício do mandato, do Presidente da República, por crime de responsabilidade, por ato cometido em mandatos anteriores.

O Problema

            Nos últimos dias, a imprensa tem noticiado a existência de um conjunto de petições, apresentadas à Câmara dos Deputados, de crime de responsabilidade da Presidenta da República. Muitas delas foram rejeitadas. Porém, uma delas foi recebida e processada, dando início, na Câmara, à discussão sobre a possibilidade de a casa do povo autorizar o Senado Federal a abrir o processo por crime de responsabilidade.

Diante dessa conjuntura política vivida pelo país, este estudo examina a possibilidade jurídica de processamento de impeachment da Presidenta da República, considerando os aspectos formais e materias para a responsabilização do Chefe de Estado e de Governo, considerando as normas de regência constitucionais atinentes à matéria.

            Nossa discussão sobre o tema ficará circunscrita a três questões, que entendemos hoje controversas: a) as conseqüências da natureza política do processo por crime de responsabilidade; b) a natureza pessoal e o dolo no ato a ser considerado crime de responsabilidade; c) a possibilidade de impeachement baseado em fatos ocorridos em mandato anterior.[1]

Natureza política dos crimes de responsabilidade

            As formas de responsabilização do Presidente da República no Brasil são mais restritas do que em outros países. Aqui, temos apenas a responsabilização do Presidente por crimes, dividindo a Constituição os crimes em dois tipos: crimes comuns e crimes de responsabilidade.

            O nosso “crime de responsabilidade” não se confunde com a figura da responsabilidade por “mal exercício do cargo”, como na Constituição do Paraguai, de 1992. Nesse país, o art. 225 da Constituição prevê a submissão do Presidente da República ao juízo político por "mal desempeño de sus funciones, por delitos cometidos en el ejercicio de sus cargos o por delitos comunes".

            Não se confunde, também, o "crime de responsabilidade" com a figura do recall, ou seja, com possibilidade de revogação do mandato, que existe, em relação ao Presidente da República, na Venezuela. A Constituição desse país, em seu art. 72, prevê que quaisquer cargos eletivos são passíveis de referendo revocatório, bastando que exista pedido de vinte por cento do eleitorado e que, no referendo, a revogação receba mais votos do que aqueles que foram dados ao eleito.

            Os dois casos são de responsabilização política aberta. O juízo que é feito para o afastamento do Presidente é exclusivamente político.

            Essas hipóteses citadas diferem em muito do nosso “crime de responsabilidade”.

            Apesar de serem infrações de natureza político-administrativas, os Crimes de responsabilidade têm seus tipos específicos definidos em Lei. Pontes de Miranda, comentando a Constituição de 1967 afirma que “no sistema jurídico brasileiro, em que a palavra impeachment se evidencia inadequada, os crimes de responsabilidade, no Império e na República, são crimes, são figuras delituais penais”[2]. A expressão “crime de responsabilidade” vem, de fato, do Código Criminal do Império, mas que determinava a sua não aplicação para Ministros e Conselheiros do Estado (art. 308 da Lei 16, de dezembro de 1830). Atualmente, já se sabe que o chamado crime de responsabilidade não é uma infração penal comum, mas sim uma infração de caráter político-administrativo. Isso não quer dizer que haja uma abertura para a sua tipificação. Muito ao revés, pois a utilização do próprio nome “crime” já sugere a necessidade de configuração da legalidade estrita na tipificação da conduta. Ou seja, não é possível aos órgãos que processam e julgam o crime de responsabilidade analisar abertamente a conduta da autoridade, devendo sim identificar, de maneira clara e segura, a configuração do tipo legal. 

            Entender o contrário, admitindo que qualquer ato de gestão, submetido a uma interpretação nova, pode resultar no impedimento, seria consagrar uma poder amplo ao Parlamento de apenas admitir governos chancelados por sua maioria. A política cotidiana passaria a conviver com uma perigosa insegurança quanto ao que pode ou não ser utilizado como razão para o impedimento do Presidente.

            Nem a consagração de um ato como ilegal ou inconstitucional é razão suficiente para o impedimento. No dia a dia da Administração, atos - muitos deles editados pelo próprio Chefe do Executivo - são declarados pelo Judiciário ilegais ou inconstitucionais. Em torno deles, existiam diferentes interpretações, até então. Não é razoável ver um crime de responsabilidade em cada ato do Chefe do Executivo que, após essas divergências quanto a legalidade/ilegalidade, ou constitucionalidade/inconstitucionalidade, venha a ter interpretação pacificada pelo Judiciário em desacordo com o que praticava a Administração.

            Seria a edição de uma medida provisória posteriormente declarada inconstitucional um crime de responsabilidade do presidente? Seria a edição de um decreto que, posteriomente, o Congresso sustasse por entender ter o Presidente exorbitado o seu poder regulamentar (art. 49, V, da Constituição da República) um crime de responsabilidade? É evidente que não. A legalidade/constitucionalidade de atos do Chefe do Executivo presumem-se constitucionais e é o próprio sistema estrutura meios de impugnação dessa presunção, que podem resultar em uma declaração de ilegalidade/inconstitucionalidade do ato, sem que sua edição represente um crime de responsabilidade.

            Ainda mais grave é a situação de atos que não foram impugnados em sua legalidade/inconstitucionalidade, surgindo tal questionamento exatamente quando da acusação de cometimento de crime de responsabilidade. O processo por crime de responsabilidade não pode ser a arena adequada para verificar originariamente a legalidade/constitucionalidade de atos do Chefe do Executivo. É preciso que tal ilegalidade/inconstitucionalidade já seja evidente, desconstituída, pelos caminhos adequados, sua presunção de legitimidade.

            Ao atribuir ao Senado Federal a competência para julgar o Presidente da República por crimes de responsabilidade, o Constituinte de 1988 não criou um poder arbitrário. Não deu ao Senado o poder de livremente condenar o Presidente da República pelos fatos e pelas razões que tiver por bem tomar em consideração.

            Esse poder deve ser exercido, como qualquer outro poder em um Estado Democrático de Direito, dentro dos limites traçados pela Constituição. Nos comentários à Constituição de 1946, Pontes de Miranda relembra lição de João Barbalho sobre a responsabilidade do Presidente da República na Constituição de 1891, que, em seu art. 54, definia, como a vigente Constituição define, crimes de responsabilidade como os que atentassem contra determinados princípios constitucionais:

aplicou ao acusado o salutar princípio que se lê no seu art. 72, §15, e no art. 1o do Código Penal. E tirou, quer à Câmara dos Deputados, quer ao Senado, todo o poder discricionário que nisto de outro modo lhes ficaria pertencendo. Deste feitio, ficou consagrado que o presidente denunciado deverá ser processado, absolvido condenado, não absque lege e por meras considerações de ordem política, quaisquer que sejam, mas por procedimento de caráter judiciário, mediante as investigações e provas admitidas em direito, e julgado secundum acta et probata. E de outro modo detupar-se-ia o regime presidencial, podendo as câmaras, sob qualquer pretexto, demitir o presidente; dar-se-ia incontrastável predomínio delas. A posição do chefe da nação seria coisa instável e precária, sem independência, sem garantias[3].

Ainda citando João Barbalho:

Tudo que pode enfraquecer o direito que o presidente tem ao respeito do povo, quebrar as barreiras que o cercam, fazê-lo joguête de maiorias ocasionais, tende a destruir nosso govêrno e prejudicar a liberdade constitucional.

            A natureza limitada desse poder deve ser traduzida em um cuidado especial na apreciação das acusações. O próprio recebimento da denúncia, que já tem a drástica consequência do afastamento do Presidente, precisa estar alicerçada em fatos e elementos probatórios que exale certa segurança quanto a não se tratar de um mero uso  político-partidário do instituto da responsabilidade política do Presidente.

            Nesse sentido, Augusto Saboia da Silva Lima foi preciso, ao não receber, na década de 40, denúncia contra Prefeito do Distrito Federal:

O lmpeachment é remédio para as horas criticas, quando a proteção dos interêsses públicos se vê ameaçada pelo abuso exagerado do poder oficial, negligência do dever e conduta incompativel com a dignidade do cargo.
  Nestas condições, o simples recebimento da denúncia, no lmpeachment, reveste-se da máxima importância, sem embargo de não implicar em julgamento.
  Na atmosfera política, particularmente marcada pelas paixões, os homens encarregados dos postos de comando se expõem facilmente aos gestos sectários, que visam ao seu desprestigio ou ao seu afastamento, apenas como um golpe próprio do jôgo politico.
  Em tais circunstâncias, o simples recebimento da denúncia, por isso que marca o início do processo investigatório, alcançando, como sempre acontece, larga ressonância no espirito público, é, muitas vêzes, suficiente para atender aos objetivos visados pelos seus autores. Dai o fato de que a aceitação da denúncia nos crimes de responsabilidade escapa à rotina judiciária, para assumir o caráter de uma grave decisão, que o juiz não pode proferir sem um lúcido exame da ocorrência jurídica e sem levar em conta a sua própria sensibilidade em face do drama da vida pública.
  Somente assim poderá evitar que o impeachment, instituição que assegura aos governados o decôro e a honestidade dos governos, sofra uma inversão perigosa nos seus fundamentos e nos seus fins, transformando-se em arma demagógica, facilmente manejável apenas para servir aos sentimentos tendenciosos que envolvam a arena partidária.
  Não devem ser recebidas as queixas nos crimes de responsabilidade que não estejam vazadas em têrmos os mais nítidos, com a exposição precisa dos delitos e das penas, e sobretudo com a indicação de fatos a que o consenso público ligue, imediatamente, a idéia de crime, de ação criminosa, de uma conduta prejudicial aos interêsses públicos e incompatível com a dignidade do cargo.
  Receber a denúncia, e, conseqüentemente, aceitar como passíveis de conceituação criminosa os atos de um govêrno, por excedentes do seu poder de regulamentar atos, portanto, decorrentes apenas de uma interpretação jurídica, cuja justificação pública lhes retira qualquer intuito aleivoso, de capricho ou de usurpação, atos, enfim, praticados tendo em vista um bem comum evidente, importaria em transplantar para a Justiça as competições e as parcialidades que pertencem à esfera própria das pugnas partidárias[4].

Esse juízo de admissibilidade, feito, em um primeiro olhar, pelo Presidente da Câmara, já precisa aferir se petição não é inepta e se há “justa causa”, análise para além de aspectos formais do petitório, como definiu o Supremo Tribunal Federal:

Impeachment do presidente da República: apresentação da denúncia à Câmara dos Deputados: competência do presidente desta para o exame liminar da idoneidade da denúncia popular, 'que não se reduz à verificação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender (...) à rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao controle do Plenário da Casa, mediante recurso (...)'. [5]

De fato, a caracterização do crime de responsabilidade como uma infração de jaez político-administrativo não pode gerar instabilidade no processo de sua configuração a ponto de desconsiderar a tipicidade precisa consubstanciada na identificação clara da subsunção do fato ao texto normativo legal que disciplina os “tipos” do crime.

Tanto é verdade que as expressões vagas contidas no art. 85 da Constituição Federal de 1988 (como, v.g., atentar contra a Constituição Federal) não seriam, de per si,  suficientes para fazer deflagrar um processo por crime de responsabilidade. Há a necessidade de definir o tipo. Ou seja, imaginando que, por hipótese, não houvesse sido editada a Lei 1079, de 1950, não poderia o Senado Federal ter como base unicamente o  texto do artigo 85 da Constituição Federal para o julgamento de crime de responsabilidade. Quer-se com isso afirmar que, sem a identificação clara e precisa dos tipos lançados na legislação infraconstitucional, não seria possível justificar a punição do agente político.

Portanto, advogar a tese segundo a qual o juízo político faria pressupor a desnecessidade de identificação precisa de um tipo específico para a caracterização do crime de responsabilidade equivale a tornar a figura do Presidente da República um refém do Poder Legislativo na abertura interpretativa que poderia dar ao considerar presente a ocorrência do “crime” de responsabilidade. Mas, de fato e de direito, a caracterização do crime de responsabilidade  traz consigo a ideia de tipicidade emprestada do direito penal.

A responsabilidade pessoal e a necessidade de dolo no “crime de responsabilidade"

            Não há, em nosso ordenamento, a figura do crime de responsabilidade culposo, nem a responsabilização do Presidente da República por todo e qualquer ato praticado pela Administração.

            Como se sabe, o Direito Penal é marcado pelo princípio da excepcionalidade do crime culposo. Silente o legislador quanto à forma de punição da modalidade culposa, só haverá crime quando constatado o dolo.

            Isso ocorre também, analogicamente, com o chamado “crime de responsabilidade”. A Lei n. 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade não faz qualquer menção expressa à modalidade culposa. 

            É necessário que seja apontada uma ação específica do Presidente da República, que incorra em uma das condutas explicitadas na citada Lei, para que seja caracterizado o crime.

            Não é a mera ocorrência de uma ilegalidade em algum órgão da Administração que caracterizará o crime de responsabilidade. É preciso que o Presidente da República tenha diretamente praticado um ato definido em Lei como crime de responsabilidade e que o tenha feito dolosamente. Isto decorre do caráter sancionador da Lei 1079, de 1950. 

A Administração pública federal é uma estrutura complexa, com diversas fontes de decisão, sem as quais não seria possível atender a contento as diversas demandas que são cotidianamente dirigidas à União. Atribuir ao centro do Poder, à figura do Presidente da República, a responsabilidade política por todos os atos, a ponto de fundamentar a perda do mandato legitimado nas urnas seria uma subversão perigosa do regime constitucional da responsabilização do Chefe do Executivo.

            Nas acusações veiculadas na imprensa e que têm fundamentado os pedidos já apresentados, não vislumbramos nenhuma hipótese prevista na Lei n. 1079/50. Genéricas referências a atos de corrupção na Administração federal não fundamentam um impedimento presidencial. Também não nos parece sustentável uma acusação baseada naquilo que a imprensa tem chamado de “pedaladas fiscais” - prática que consistiu em atrasos nos repasses a bancos públicos que pagavam beneficiários de programas sociais, caracterizando, na visão do Tribunal de Contas da União, um empréstimo não autorizado. No caso, houve recomendação, pelo Tribunal de Contas da União, de não aprovação das contas presidenciais, ainda pendente de análise pelo titular do poder de fiscalização, o Congresso Nacional.

            Mesmo que, no caso das chamadas “pedaladas fiscais”, o Congresso Nacional resolva não aprovar as contas, ainda não estaria caracterizado o crime de responsabilidade. É necessário que seja associada tal prática a uma ordem presidencial, uma deliberada ação tendente a fraudar a legislação sobre finanças públicas. Essa caracterização é difícil, já que, até este ano, não havia qualquer tipo de reprimenda por parte do Tribunal de Contas para outros casos idênticos de atraso de repasses. Apesar de haver sido reconhecida a ilegalidade, não houve a caracterização do dolo da autoridade presidencial representado pela intenção de fraudar, sem esquecer que a ilegalidade reconhecida a partir da análise das contas pelo TCU não remete à consequência lógica da perda do mandato pela caracterização de crime de responsabilidade. Ademais, a recente aprovação do PLC 05/2015 terminou por gerar a adequação das práticas contábeis do governo, razão pela qual, também sob esse aspecto, não merece prosperar a tentativa de caracterização de eventual crime de responsabilidade.

            Se a lei do Impeachment possui caráter nitidamente sancionador, a configuração do elemento volitivo intencional passa a ser determinante para a caracterização do crime de responsabilidade.

Nesse ponto, pode-se, inclusive, fazer uma analogia com a configuração da improbidade administrativa (até mesmo porque a probidade na administração é uma das hipóteses abstratas indicadas como crime de responsabilidade). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assim assinala no Recurso Especial 734.984-SP:

RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. AUSÊNCIA DE DOLO. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. O ato de improbidade, na sua caracterização, como de regra, exige elemebto subjetivo doloso, à luz da natureza sancionatória da Lei de Improbidade Administrativa. 
2. (omissis)
3. É que “o objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador desonesto, não o inábil. Ou, em outras palavras, para que se enquadre o agente público na Lei de Improbidade é necessário que haja o dolo, a culpa e o prejuízo ao ente público caracterizado pela ação ou omissão do administrador público”  (...) A finalidade da Lei é pubir o administrador desonesto(...)”

            É assente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o agente político não se submete à Lei de Improbidade, justamente por se submeter à Lei do Impeachment. Mas, materialmente, as condutas são as mesmas. As duas leis são sancionatórias. E, assim como para a improbidade, para a punição pelo crime de responsabilidade da Lei 1979, de 1950, também se exige a conduta dolosa, pois visa-se punir o administrador desonesto, e não o inábil.

            Até o momento, não há indicação de ato presidencial que possa ser caracterizado como um ato deliberadamente intencional voltado à prática da desonestidade. Não há o ato pessoal (da Presidenta) e doloso (intenção de fraudar), razão pela qual não se pode afirmar, por ora, que há a caracterização do crime de responsabilidade que possa ensejar a autorização da Câmara dos Deputados para a abertura do processo de impeachment no Senado Federal. 

Atos estranhos no tempo

Um outro ponto de relevo que deve ser destacado diz respeito à chamada “clausula de irresponsabilidade relativa” prevista no art. 86, § 4º, que assim prevê:

O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

            O texto da Constituição faz referência expressa à responsabilização “na vigência de seu mandato”.[6]

            Os textos doutrinários quando tratam da responsabilidade do Presidente da República tradicionalmente referem-se à figura dos “atos estranhos” - em relação aos quais o Presidente não é responsabilizado durante o mandado - por seu conteúdo, por sua matéria. Assim, entendem que não responde o Presidente da República por atos que não tenham ligação direta como exercício da função presidencial, ou seja, por crimes não funcionais.

            Essa forma mais restrita de analisar o tema decorre do fato de que, até 1998, não tínhamos no Brasil, ainda, a reeleição presidencial. Assim, não era colocada a questão da aplicabilidade aos chamados crimes de responsabilidade e, consequentemente, não era discutido o problema temporal na análise dos “atos estranhos”.

            É preciso, para a correta compreensão do instituto, ressaltar que essa exclusão é aplicável, em tese, a todas as formas de responsabilidade do Presidente e não apenas em relação à responsabilidade por crime comum. Veja-se que o texto constitucional fala em responsabilidade por “atos".

            Com a reeleição institucionalizada, é necessário colocar em discussão a questão dos atos estranhos no tempo, ou seja, os atos que não foram praticados no mandato, mas em mandato anterior. Seria possível condenar o Presidente reeleito por um ato praticado no mandato anterior?

            O absurdo de uma possível resposta positiva fica mais claro quando pensamos em um presidente não reeleito, mas que retorna à Presidência em novas eleições, após um mandato de seu sucessor. Ainda não “prescrito" o crime, poderia ser responsabilizado em processo de impeachment por ato que praticou há dois mandatos, quando foi pela primeira vez Presidente da República?

            O processo eleitoral seria uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”. Teríamos a figura do presidente eleito já marcado, antes mesmo de sua posse, para perder o mandato.

            Esta situação deve ser tratada da mesma forma que o caso de um mandato subsequente ao no qual se deu o possível crime de responsabilidade. Um novo mandato deve ser tratado como uma unidade independente, respondendo o titular do cargo por atos praticados nesse novo momento.

Conclusão

            Diante das análises que apresentamos, concluímos que o processo e o julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, no Brasil, apesar da natureza política do órgão competente, está subordinado a um conjunto de parâmetros constitucionais, não gerando um poder ilimitado para o órgão que autoriza (a Câmara dos Deputados) e para o órgão que julga (o Senado Federal), havendo a necessidade de ser demonstrado qual foi o ato e, mais, que esse ato foi cometido dolosamente pelo titular do cargo.
Ainda, quanto ao aspecto temporal, apenas atos cometidos na vigência do mandato no qual se dá a acusação podem ser considerados para fins de responsabilização político-administrativa.
Portanto, não identificamos a caracterização de qualquer ato pessoal e direto da Presidenta da República que possa configurar o crime de responsabilidade, razão pela qual, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “a competência do Presidente da Câmara dos Deputados (...) para recebimento, ou não, de denúncia no processo de impeachment não se restringe a uma admissão meramente burocrática, cabendo-lhes, inclusive, a faculdade de rejeitá-la, de plano, acaso entendam ser patentemente inepta ou despida de justa causa”.
Estando ausente a justa causa para deflagrar o início do processo, reputamos inconstitucinoal o prosseguimento do procedimento instaurado na Câmara dos Deputados para a finalidade de autorização do processo de crime de responsabilidade. 

Recife, 5 de novembro de 2015.


Gustavo Ferreira Santos[7]

Marcelo Labanca Corrêa de Araújo[8]

João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira[9]



[1] Este estudo pro bono possui natureza academicista-jurídica
[2] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda Constitucional 1/69,., 2a ed., Tomo III. São Paulo:. RT, p. 355
[3] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1946. Vol II. 2a Edição, revista e aumentada. São Paulo: Max Limonad, 1953, p. 421.
[4] LIMA, Augusto Sabóia da Silva. Crime de responsabilidade - denúncia contra o prefeito do Distrito Federal - impeachment, Jurisprudência dos Tribunais, Revista de Direito Administrativo, v. 14 (1948), -p. 295
[5] MS 20.941-DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 31-8-1992." (MS 23.885, rel. min. Carlos Velloso, julgamento em 28-8-2002, Plenário, DJ de 20-9-2002.) Vide: MS 30.672-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 15-9-2011, Plenário, DJE de 18-10-2011.
[6] Apesar do entendimento esposado pelo STF no Inq 672-QO, não há qualquer exegese que restrinja a aplicação do disposto no art. 86, § 4º, apenas às infrações penais comuns, podendo a tal cláusula de irresponsabilidade relativa ser utilizada para o caso de atos pré-mandato que caracterizem, em tese, a prática do crime de responsabilidade. Tal afirmação se torna mais robusta na medida em que o próprio crime de responsabilidade, dada a sua natureza político-administrativa, apenas pode ser praticado por aquele que esteja no exercício da função, o que reforça a tese segundo a qual os atos pré-mandatos não podem ser utilizados para a responsabilização do agente político em processo de impeachment.
[7] Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco (licenciado). Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito. Pós-Doutorado na Universitat de València. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Procurador do Município do Recife. Membro do grupo REC/CNPq Recife Estudos Constitucionais.
[8] Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco. Mestre e Doutor em Direito (UFPE). Pós-Doutorao na Universidade de Pisa. Membro do grupo REC/CNPq Recife Estudos Constitucionais.
[9] Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Mestre e Doutor em Direito. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Membro do grupo REC/CNPq Recife Estudos Constitucionais.

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