Em
meio a organização da festa de Ano Novo chinês para sua família e clientes, Evelyn
é chamada na Receita Federal pela impaciente e mal humorada auditora Deirdre
(Curtis) que lhe aponta inúmeras inconsistências em sua declaração de imposto e
lhe dá um ultimato para que as correções fossem feitas até aquele mesmo dia. E
é nesse momento que o filme tem seu primeiro de incontáveis giros: um
multiverso se abre para tentar ajudar nossa personagem – ou para lhe pedir
ajuda - e começa uma verdadeira confusão
narrativa – mas que faz todo sentido – de múltiplos universos e a possibilidade
de saltar entre eles desenvolvendo capacidades dentre as possibilidades do seu
ser.
Uma
primeira reflexão me veio à mente no que condiz às nossas escolhas e suas
consequências, cada opção feita nos traz um leque de desdobramentos e um
universo único e diferente como fruto disso, dentro de incontáveis multiversos
possíveis. Talvez negar um livro pro colega de escola pudesse te levar a ser
uma estrela de Hollywood, pegar inadvertidamente um caminho para casa diferente
do usual poderia ter te tornado um metre de Kung-fu, ou ter acreditado num
negócio lá atrás que você não teve coragem de investir poderia findar num
caminho onde você fosse um grande empresário. Quem sabe? Isso tudo pode soar
tentador em um primeiro momento, mas as frustrações e lacunas ínsitas à condição
humana invariavelmente acompanham todas as facetas possíveis do nosso eu.
Então, qual saber qual a melhor “realidade” ou se o que penso ser real
realmente o é e não apenas um borrão sem sentido dentro de uma fenda de
possibilidades? Tudo isso parece muito confuso, e a vida também não é? Uma
eterna inconsistência de eventos, sentimentos, ações e desdobramentos que irão
nos levar repetidamente à mesma sensação que sempre irá nos acompanhar: de
lacuna. Esse é o “tudo”.
Diante
de todas as possibilidades experimentadas, em um determinado ponto nossa
heroína descobre o que sempre esteve diante dela, mas ela nunca tinha percebido
e é seu marido do primeiro multiverso apresentado na narrativa quem lhe
apresenta: a única coisa capaz de nos salvar em qualquer existência, multiverso
ou perspectiva é o nosso coração e sua capacidade de amar o outro em sua
inteireza lacunosa, em suas inconsistências, medos e tantos defeitos. Um
coração bom é capaz de salvar todos os universos possíveis, em seu acolhimento
e na compreensão de que assim como as realidades são múltiplas, os seres
humanos e suas necessidades também. E por que seria diferente? Eu sempre costumo
dizer que cada mente humana é um universo e, mais do que tentar entendê-la,
julgá-la ou imprimir o que nos achamos “certo” ou “errado”, talvez devamos
apenas acolher o outro e recebê-lo em sua bela complexidade que também nos é inato.
Mas com isso não quero dizer que não há um certo consenso social de “certo” e
“errado”, mas sim que, nem tudo do outro realmente nos condiz – e que tarefa
difícil a de perceber o que é e o que não é do nosso respeito, pois a
multiplicidade do nosso “eu” somente a nós mesmos nos condiz. Aqui temos o “em
todo lugar”.
“Um coração bom é a coisa mais bonita que alguém pode ter” e foi observando a gentileza de seu marido Waymond (Ke Huy Quan), antes tida como seu ponto fraco e que o colocava como um personagem patético aos olhos de sua esposa, que Evelyn encontra as armas necessárias para ‘vencer’ – se é que podemos chamar assim - a vilã de todos os multiversos Jobu Tupaki, para quem a existência humana não passa de algo patético e que deveria, portanto, ser eliminada. E são nos pequenos gestos que a heroína consegue salvar cada um dos personagens do seu estado bélico e mostrá-los de forma gentil que, por mais tolo que pareça, ser bom e gentil com o próximo ainda vale a pena, mas não a bondade que você acredita que o outro precisa, e sim a que ele realmente necessita dentro do universo que ele representa. O amor pode, muitas vezes, não fazer sentido, na verdade nossas escolhas e a própria vida em si na maioria das vezes vão nos aparentar assim, como algumas manchas de tempo em que nossos caminhos – escolhidos ou não - realmente fazem algum sentido. Então, caro leitor, convido você a apreciar cada uma dessas manchas da forma mais tola e bondosa sem se apegar ao que poderia ter sido, mas acolhendo e amando a realidade por você mesmo escolhida na adoleta da existência. Acredite, essa é sua melhor versão de todas as possíveis “ao mesmo tempo”.
WIllaine Araújo é Doutoranda em Direito pela UNICAP e Professora de Direito Constitucional
Nota do Editor: O grupo REC contempla uma diversidade orgânica de linhas de pesquisa. Uma delas, destinada à reflexão envolvendo a multiplicidade de manifestações artísticas tais como a música, o teatro, o cinema, a dança, o grafite. Nesse contexto, e valorizando a linha de pesquisa, a contribuição de Willaine Araújo sobre o filme "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" oferece ao grupo REC a possibilidade de refeltir sobre categorias fundamentais da contemporaneidade, como a construção da subjetividade moderna e os seus reflexos para pensarmos temas muito caros ao constitucionalismo, como a diferença, o reconhecimento do outro, e no limite, pensarmos em democracia como espaço de acolhimento. Nesse contexto, destaca a importância de abraçar o outro na sua inteireza lacunosa. Eis a essência da democracia, a articulação dos limites e possibilidades de convivência com o outro, quase sempre estranho, difrente, e por isso, sempre desafiador.
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