1 Introdução
O avanço da tecnologia, a estetização da vida e a fragilidade das relações sociais têm produzido fenômenos sociais inusitados, que desafiam as formas tradicionais de regulação jurídica. As bonecas Reborn, produzidas com impressionante realismo para se assemelharem a bebês, são mais do que simples objetos artísticos ou brinquedos: tornam-se, para muitas pessoas, substitutos simbólicos da experiência materna, formas de elaboração do luto ou até mesmo suportes afetivos diante da solidão e do vazio existencial.
Vivemos em uma era em que as fronteiras entre realidade e representação se tornam cada vez mais tênues. No filme O Show de Truman, a vida do protagonista é um espetáculo manipulado, transmitido em tempo real sem seu conhecimento. Debord (1997), em A Sociedade do Espetáculo, denuncia uma sociedade em que a aparência se sobrepõe à existência, transformando tudo — inclusive as relações humanas — em mercadoria e imagem. É a liquidez da vida, como assevera Bauman (2001).
Nesse mesmo universo simbólico, insere-se o fenômeno dos bonecos Reborn: artefatos hiper-realistas que evocam a infância e possibilitam a encenação da maternidade fora dos marcos tradicionais. Diante disso, pergunta-se: o Direito deve, ou pode, intervir nesse campo onde o simbólico, o lúdico e o afetivo se confundem com o real? Esta reflexão busca explorar os limites e possibilidades da atuação jurídica frente à ilusão performática, à autonomia individual e à espetacularização da vida privada.
2. O Show de Truman, a sociedade do espetáculo e o simulacro da experiência
Os meios de comunicação de massa, atualmente, constituem os veículos mais utilizados para disseminar informações. Esse universo plural, do qual o cinema também faz parte, exerce papel relevante na organização e na construção de determinada realidade social.
A credibilidade contemporânea atribuída ao cinema, ao registrar e narrar acontecimentos fictícios ou reais, caracteriza-o como uma forma de arte representacional, tornando-o indissociável do contexto social. Isso porque é na própria realidade social que o conceito de arte é constantemente redefinido como uma prática específica, inserida entre os processos de produção e consumo. Pode-se afirmar, nesses termos, que, na atualidade, a arte é deslocada de um patamar privilegiado e inserida no campo da cultura comum, na medida em que apresenta fatos sociais historicamente relevantes. O cinema, seja em película, seja em formato digital, demanda a representação de contextos políticos, ideológicos e socioculturais — forma e conteúdo se articulam — uma vez que ele não apenas reflete, mas também constitui e influencia práticas e experiências, abrindo acesso a mundos desconhecidos e suscitando novas percepções.
O Show de Truman (The Truman Show – EUA, 1998) oferece uma crítica contundente ao elevado grau de espetacularização que caracteriza a sociedade contemporânea. Dirigido por Peter Weir e roteirizado por Andrew Niccol, o filme narra a história de Truman Burbank (interpretado por Jim Carrey), um pacato corretor de seguros que, sem saber, é o protagonista de um reality show transmitido ininterruptamente desde o seu nascimento. Toda a sua vida se desenrola na fictícia ilha de Seahaven — o maior estúdio já construído — onde câmeras ocultas registram, 24 horas por dia, cada um de seus movimentos. Seus familiares, esposa, amigos e colegas de trabalho são, na verdade, atores contratados, sob a direção de Christof (Ed Harris), o idealizador e controlador do programa.
À medida que acontecimentos estranhos começam a ocorrer, Truman passa a desconfiar da aparente harmonia e perfeição do mundo ao seu redor. O filme acompanha sua jornada de descoberta, marcada por uma busca crescente pela verdade sobre sua própria existência e pelo desejo de liberdade frente à encenação que o aprisiona (Geraldo, 2010). Truman vive em um mundo inteiramente simulado — e essa simulação é sua única realidade. Isso ecoa a noção de simulacro desenvolvida por Jean Baudrillard, segundo a qual a cópia substitui o real, e a verdade se dissolve na representação.
A vida de Truman (assim como a maternidade espetacularizada das mães Reborn) é um produto midiático, uma mercadoria emocional — ou, nos termos do velho Marx, um "fetiche da mercadoria". Seu sofrimento, sua alegria e seus medos são consumidos como entretenimento. Tal leitura dialoga diretamente com Guy Debord, que, em A Sociedade do Espetáculo, alerta para uma cultura em que tudo é transformado em imagem e encenação. Segundo Debord (1997), a sociedade contemporânea é marcada pela substituição do real pelo espetáculo: aquilo que antes era vivido de forma direta passa a ser representado, encenado, transformado em imagem e objeto de consumo. O espetáculo, nesse sentido, configura-se como a “inversão concreta da vida”, na qual o que importa é a aparência, a visibilidade e a estetização.
As bonecas Reborn inscrevem-se perfeitamente nessa lógica: simulam a presença de um bebê, oferecem a estética da maternidade, mas sem os riscos, as responsabilidades e a alteridade inerentes à relação com um ser humano real. Trata-se de um simulacro — termo que, à luz de Baudrillard, indica a substituição do real por uma cópia sem original — que produz efeitos afetivos concretos, embora desprovidos da presença de um sujeito de direito na outra ponta da relação.
No plano jurídico, o vínculo é inexistente: não há reciprocidade, não há responsabilidade parental, não há personalidade jurídica. Há, contudo, uma experiência subjetivamente vivida como maternidade — ainda que em sua forma simulada.
3. A modernidade líquida, a representação social e a fuga para o simbólico
Assim, ao se assistir a um filme, observa-se, naquelas imagens, a representação de uma diversidade de culturas, identidades e estruturas de poder. Há, também, a expressão da razão — ou de uma nova razão —, bem como decepção, alegria, tristeza, surpresa, incômodo e dor. O espectador poderá vivenciar todas as percepções ou emoções que a película for capaz de desencadear. O cinema é uma arte construída por imagens e palavras — algumas ditas, outras não ditas —, que nos transporta a lugares inexplorados: uma arte que surpreende.
Segundo Pesavento (1995), “cinema é uma forma de reprodução de imagem, e desperta um interesse cada vez mais crescente pela representação do real”. Para Bourdieu(1989), o cinema é compreendido como uma estrutura diversificada que abrange produção, criatividade, hábitos e valores simbólicos e imaginários que retratam uma sociedade específica. Pode-se afirmar, ainda, que o cinema, como outras mídias, funciona como um produto fundamental da sociedade contemporânea, participando ativamente da psique coletiva, da consciência e da experiência dos indivíduos.
Um filme não apenas retrata uma sociedade: ele a encena. “O filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário, constrói um mundo possível que mantém relações complexas com o mundo real” (Esteves, 2013, p. 25). Constitui, nesse sentido, segundo Francis Vanoye (1994, p. 56), “um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação da sociedade em espetáculo, em drama (no sentido geral do termo), e é essa estruturação que é objeto dos cuidados do analista.”Para Esteves (2013), as “imagens nos mostram um mundo, mas não o mundo em si” — são, portanto, representações.
Bauman (2001), em sua obra Modernidade Líquida, diagnostica os tempos atuais como líquidos, marcados pela ausência de solidez nos vínculos e pela transitoriedade dos compromissos. A maternidade, enquanto experiência profundamente relacional e intersubjetiva, é, nesse contexto, percebida por muitos como excessivamente onerosa, emocionalmente instável e juridicamente complexa.
Assim, a ilusão Reborn, ou a construção de uma identidade materna simbólica a partir da interação com bonecos, surge como uma resposta individualizada a esse cenário: oferece o vínculo sem o outro; o afeto sem a alteridade; o cuidado sem a reciprocidade. Trata-se de uma “maternidade performática”, muitas vezes registrada e exibida em redes sociais, na qual a função simbólica da maternidade é satisfeita por um objeto — um objeto/bebê — que não interage, não chora, não exige grandes cuidados, e que encena a maternidade como algo fácil: um afeto sem troca, um faz de conta destituído de realidade.
Esse tipo de prática, embora não ilícita, revela o esvaziamento das formas tradicionais de relação, substituídas por formas estéticas e subjetivas. Surge, então, uma pergunta central: pode o Direito regular tais relações? Deve ele intervir para proteger o indivíduo contra sua própria idealização ou sofrimento simbólico? Ou, ao contrário, deve respeitar o campo do simbólico como um espaço de liberdade individual?
4. Identidade materna simbólica e a ilusão Reborn: quando o jurídico não tem vez (ou teria?)
O Direito, enquanto sistema normativo, baseia-se em categorias como sujeito, responsabilidade, dano e conduta. Em práticas como a ilusão Reborn ou a construção de uma identidade materna simbólica, essas categorias não se aplicam facilmente. Não há sujeito lesionado, nem conflito entre partes, tampouco uma externalidade social evidente. O vínculo afetivo com um objeto — ainda que simbolicamente investido de humanidade — não constitui, por si só, uma relação jurídica.
No entanto, a tradição jurídica moderna tem ampliado seus domínios para abarcar novas formas de subjetivação e afetividade, como evidenciam debates sobre direitos da personalidade, proteção do luto ou mesmo o reconhecimento jurídico de vínculos socioafetivos. Nesse contexto, cabe indagar: as mulheres que constroem identidades maternas simbólicas a partir da interação com bonecos Reborn estariam amparadas pelos direitos fundamentais à liberdade individual e ao livre desenvolvimento da personalidade?
O artigo 5º, incisos II e X, da Constituição Federal assegura justamente esses princípios, garantindo a todos a liberdade de fazer ou deixar de fazer algo, salvo imposição legal, bem como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. O ponto de tensão emerge quando tais identidades simbólicas extrapolam o âmbito privado e são utilizadas para reivindicar benefícios reais — como atendimento médico, acesso a assentos preferenciais ou até mesmo inclusão em campanhas de vacinação — mediante a apresentação de um Reborn como se fosse uma criança real. Nesses casos, podem configurar-se hipóteses de fraude, má-fé ou lesão ao interesse público, especialmente pelo uso indevido de serviços do SUS ou pela ocupação indevida de leitos hospitalares.(Lenza, 2025)
É necessário, sim, pensar em alternativas para coibir eventuais tentativas de má-fé mediante o uso de um simples boneco. Neste ponto, torna-se relevante a escuta de um testemunho não simbólico, mas real: o depoimento de uma mãe atípica, que relata a maternidade efetiva e seus desafios. Segundo Aline Lopes Rangel (2025):
“Vi um vídeo de uma moça levando um boneco ao hospital, porque, segundo ela, o boneco não estava bem. Só consegui pensar: ela não sabe o que é estar num hospital de verdade. Eu, mãe atípica, sei. Sei o peso de uma internação, o frio da incerteza, o silêncio de uma madrugada em vigília. Hospital não é cenário. Não é brincadeira. É lugar de luta. Os valores estão tão invertidos que a dor virou conteúdo. Enquanto uns brincam de hospital, outros lutam para sair dele com vida.” (Rangel, 2025)
Esse depoimento expressa com força a diferença entre a realidade concreta e as representações simbólicas. Por essa razão, é necessário refletir criticamente: de algo irreal podem emergir preocupações reais. Propostas legislativas já tramitam com o objetivo de regulamentar a questão. Entre elas, destacam-se:
A intervenção estatal, nesse contexto, deve ser orientada pelos princípios da razoabilidade e da necessidade. A Constituição protege tanto a dignidade da pessoa humana quanto o interesse público — e sancionar condutas privadas que não geram prejuízos concretos pode comprometer esse equilíbrio delicado. A linha entre liberdade lúdica e comportamento patológico deve ser traçada com cautela, empatia e respaldo técnico.(Lenza, 2025)
Ressalte-se que a relação com o Reborn não produz efeitos jurídicos no âmbito do Direito de Família: trata-se de um objeto, e não de um sujeito de direito. Assim, não há que se falar em guarda, filiação, adoção ou pensão alimentícia. Eventuais disputas envolvendo bonecos Reborn devem ser tratadas no campo do Direito das Coisas, e não das relações familiares.
Cabe ao Estado, portanto, garantir simultaneamente a proteção dos recursos públicos e o respeito à liberdade individual. A intervenção jurídica só se justifica diante de uma lesão concreta a terceiros ou de desvio de finalidade na utilização de serviços públicos.
Por fim, a ilusão Reborn evidencia um deslocamento do afeto para o simbólico, do real para o simulacro, da relação para a performance. Trata-se de um fenômeno que desafia a forma jurídica tradicional, justamente por não apresentar os elementos que sustentam a normatividade jurídica: conflito, sujeito, conduta e dano — numa sociedade líquida, do espetáculo e da desumanização.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
ESTEVES, Flávia Cópio. Reinventando o político nas telas: gênero, memória e poder no cinema brasileiro (décadas de 1970 e 1980). 2013. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.
JODELET, Denise. As representações sociais. Tradução Lílian Ulup. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.
GERALDO, Jessica Camargo (2010). O Show de Truman, o Show da Vida. Disponível em: https://objethos.wordpress.com/2010/05/26/resenha/. Acesso: 18 de maio de 2025.
LENZA, Pedro. Comentários ao Instagram. 2025.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995.
RANGEL, Aline. Comentário ao Instagram. 2025.
VANOYE, Francis; GOLIOT-LET́ E, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 1994.
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger é professora nos programas de pós-graduação em direito da FMP e FURG, Rio Grande Sul.