“O teu
futuro é duvidoso
Eu vejo grana, eu vejo dor
No paraíso perigoso
Que a palma da tua mão mostrou”
(Cazuza Bete Balanço, 1984)
“Grande pátria desimportante
Em nenhum instante eu vou te trair
Não, não vou te trair”
(Cazuza,
Brasil, 1987)
Entre a Bete Balanço da primeira metade dos anos 1980 e a Odete Roitman de 2025, o Brasil atravessa um ciclo profundo de transformações sociais, culturais e políticas. Ambas interpretadas pela atriz Débora Bloch em diferentes momentos da recente história brasileira, a primeira no cinema e a segunda na televisão, tornam-se o eixo simbólico desta análise, em que cada papel encarna aspectos de uma nação em mutação.
Lembro que na minha adolescência, vi nas telas do cinema Veneza, no Recife, o filme Bete Balanço (1984), de Lael Rodrigues (acompanhado do meu pai – o filme era classificado pela censura como impróprio para menores de 14 anos) No filme, o personagem homônimo uma jovem do interior de Minas Gerais que sonhava em conquistar o sucesso artístico no Rio de Janeiro. Rebelde, idealista e impulsiva, ela representa a juventude brasileira do fim da ditadura militar — sedenta por liberdade, movida por sonhos e embalada pelo rock nacional emergente. Sua trajetória expressa os anseios de uma geração que via no futuro a realização da promessa de progresso democrático e emancipação individual e social. Mesmo diante das adversidades como violência urbana, machismo no mercado fonográfico, etc. Bete acredita no futuro e na conquista de um lugar ao sol. Bete Balanço representa a ascensão de uma classe média urbana que fazia vibrar as universidades, a música, a arte e a cultura.
Tudo isso no contexto de uma
grande ebulição social, movimentos de rua como a campanha pelas diretas
culminando com a confirmação de uma institucionalidade definida pela
promulgação da Constituição de 1988. A Primeira versão de “Vale Tudo”, novela
de Gilberto Braga exibida em 1988, apresenta ao país Odete Roitman, personagem eternizado
pela atriz Beatriz Segall, uma empresária fria, autoritária e insensível que detestava
o Brasil, seu povo e seus modos de vida[1]. Em
qualquer contexto, Odete é o símbolo de uma elite nacional cruel e opressora.
No zeitgeist típico do fim da década de 80, Odete foi a vilã que o Brasil
se acostumou a odiar, vindo a ser assassinada a tiros para delírio e catarse do
público.
Nos anos seguintes, o país
passaria pela ilusão da estabilidade econômica e frustrações recorrentes:
inflação crônica, desigualdades persistentes, crises políticas e o Impeachment
de Fernando Collor de Mello, primeiro presidente eleito pelo voto direito
depois de mais de duas décadas de ditadura no país. Na sequência, Mensalão,
Lava Jato, e o Impeachment de Dilma Rousseff.
Quase quarenta anos depois,
surge a releitura de Odete Roitman, agora reconstruída em 2025 por Manuela
Dias em esforço de adaptação da trama aos novos tempos. A nova Odete,
interpretada pela mesma Débora Bloch que deu vida a Bete Balanço, vive em um
Brasil onde a desigualdade foi agravada pelas novas formas de exclusão digital
onde as lutas por igualdade de gênero, raça e renda ganharam protagonismo. Essa
Odete representa um Brasil pós-pandemia, fraturado politicamente,
hiperconectado através das redes sociais, um país cujas contradições foram
aprofundadas exponencialmente. Ao mesmo tempo em que há avanços sociais
visíveis — maior participação feminina em espaços de poder, políticas
afirmativas, debates sobre justiça climática e indígena — há também um
recrudescimento autoritário, uma resistência à diversidade e uma elite que se
reconstrói com novos códigos, mantendo os velhos privilégios de sempre.
Surpreendetemente, em 2025 Odete
caiu no gosto de setores significativos da sociedade brasileira sendo alçada à
condição de “ícone pop”, mesmo representando o pensamento de uma elite
colonial, racista, entreguista e anti-nacional. É que a complexidade da
composição do personagem da nova Odete é apresentada como uma mulher
empoderada, dona de si, estrategista e dominadora, trazendo também ao debate a
contribuição de relevantes lutas pela emancipação feminina. Assim, diante de
uma sociedade impaciente e ressentida, valores como honestidade, solidariedade,
construção social, lutas coletivas, etc, talvez não tenham mais o mesmo poder
de sedução que tinham há 37 anos. No cenário de desencanto contemporâneo, acreditar
no futuro e pensar em um desenvolvimento humano dentro das regras do jogo pode representar
valores em baixa, daí a repulsa ao personagem Raquel, nesta versão interpretada
por uma mulher negra, a atriz Taís Araújo. Nas duas versões do folhetim, Raquel
é a antagonista de Odete, representando a encarnação da honestidade e da lealdade,
muitas vezes confundidas como mera ingenuidade.
Bete e Odete nos ajudam a contar
a história de um país que procura caminhos para a mudança, mas muitas vezes anda
em círculos. Suas personagens são janelas para o espírito de cada tempo: da
esperança utópica à crueza distópica, do sonho de protagonismo popular ao
ceticismo contemporâneo. Mais do que personagens, Bete
Balanço e Odete Roitman são metáforas vivas do Brasil. A primeira, uma semente
de liberdade; a segunda, um espelho da elite nacional. Duas figuras — uma que
corre atrás de um sonho e outra que zela por seus privilégios.
O Brasil de Bete Balanço a Odete Roitman é um país
em disputa. Entre a utopia e o cinismo, entre o coletivismo e o individualismo,
entre a esperança e o desencanto. As duas personagens são extremidades de uma
narrativa nacional marcada por ciclos, rupturas e eternos recomeços.
[1]
Dentre as frases emblemáticas proferidas por Odete Roitman: "Essa terra
não tem jeito! Esse povo não vai pra frente. As pessoas aqui não trabalham! Só
se fala em crise nesse país”; Um povo preguiçoso! Isso aqui é uma mistura de
raças que não deu certo!"; "E eu que pensei que alguma coisa tinha
mudado nesse país. Foi só botar o pé aqui que você começa a sentir esse calor
horroroso, uma gente horrível no caminho, gente feia esperando ônibus
caquéticos no ponto”; "Chinelo, chinelo… Que palavra horrível! Português é
uma língua tão chinfrim."; “O lugar mais ao sul que uma pessoa civilizada
pode ir é Milão."; "Eu gosto do Brasil. Acho lindo, uma beleza. Mas
de longe, no cartão postal”; "O Brasil é um país de jecas. Ninguém aqui
sabe usar talher de peixe."; “Nosso jantar é muito simplesinho. O primeiro
prato é de uma simplicidade franciscana. Temos uma lagostazinha."; “A
única solução para a violência é a pena de morte. Para ladrão e assaltante,
cortar a mão em praça pública. E se cortasse a mão dessa gente, diminuiria o
índice de violência nesse país. Não tenha dúvida.”; "Roma é a cidade
eterna, mas eu continuo preferindo Paris. Aliás, Paris é minha pátria, assim
como é de todas as pessoas civilizadas."; Às vezes eu tenho a sensação que
as pessoas não viajam, não aprendem, não vão a Paris. Aliás, não vão nem a
Buenos Aires."; "Você acha que eu vou pegá-los no aeroporto? Eu acho
a coisa mais jeca dar plantão em aeroporto. Eles até colocaram vidro para as
pessoas não verem quem está chegando, mas mesmo assim as pessoas colocam o
nariz no vidro, penduram criancinha pra dar 'tchau'. Eu vou mandar o
chofer."
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