Por João Paulo Allain Teixeira, Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro e líder do grupo de pesquisas REC CNPq – Recife Estudos Constitucionais.
"Para a compreensão da atividade jurisdicional, é sempre oportuno lembrar que na era das redes sociais e da crescente exposição midiática de juízes e tribunais – inclusive com julgamentos regularmente televisionados – ajudam a desmistificar a crença de que processos decisórios acontecem em um espaço imune às paixões e subjetividades, como se a decisão emergisse do éter e como se o ato interpretativo estivesse faticamente protegido da dinâmica sempre imponderável da mídia e das reivindicações sociais. Nos últimos tempos, como é fácil perceber, a suscetibilidade do poder judiciário a uma agenda midiática é bem sugestiva da inutilidade de pensarmos direito e sociedade como realidades apartadas."
O Lugar do
não-dito na Teoria do Direito
João Paulo
Allain Teixeira*
Na minha
experiência em sala de aula, sempre percebi nos alunos uma certa ansiedade por
definições peremptórias, prontas e acabadas. A maioria dos estudantes de
direito parece se preocupar muito pouco com a compreensão dos institutos
jurídicos enquanto reflexo de uma sociedade dinâmica, conflituosa e instável, procurando
com muito mais intensidade a captura das formas definidas pela legislação para
o tratamento das questões juridicamente relevantes. Como se as palavras
guardassem uma essência estática, imutável e inquestionável e como se as
relações de poder em nada interferissem em processos decisórios no direito.
Apenas os mais curiosos eventualmente ensaiam uma pesquisa jurisprudencial,
tentando identificar as marcas do debate judicial que resultaram na decisão e
estabilização dos sentidos normativos.
Quero sugerir uma inversão da pauta metodológica tradicionalmente consagrada
para o estudo do direito enfatizando antes a dimensão do não-dito do que
propriamente as explicitações sempre presentes nos textos legais e nas decisões
judiciais.
Os temas
relativos à subjetividade apesar de amplamente discutidos nas ciências sociais,
têm tido espaço reduzido de reflexão no quadro do pensamento jurídico
contemporâneo. Nesse sentido, parece oportuno desvelar, a partir do discurso
oficial encontrado na legislação e na fundamentação das decisões judiciais, as
profundezas das suas bases de sustentação, indo além da sua fachada racional,
utilizando estratégias “arqueológicas” (Foucault, 2008). Para alcançar este
objetivo, importa considerar em grande medida a dimensão do “não dito” e
do “silêncio” (Derrida, 2007; Orlandi, 2015) como fontes importantes para a
reconstrução do sentido da normatividade.
Para a
compreensão da atividade jurisdicional, é sempre oportuno lembrar que na era
das redes sociais e da crescente exposição midiática de juízes e tribunais -
inclusive com julgamentos regularmente televisionados - ajudam a desmistificar
a crença de que processos decisórios acontecem em um espaço imune às paixões e
subjetividades, como se a decisão emergisse do éter e como se o ato
interpretativo estivesse faticamente protegido da dinâmica sempre imponderável
da mídia e das reivindicações sociais. Nos últimos tempos, como é fácil
perceber, a suscetibilidade do poder judiciário a uma agenda midiática é bem
sugestiva da inutilidade de pensarmos direito e sociedade como realidades
apartadas.
Tratar de
processos decisórios no direito importa assim, em exercitar a compreensão dos
limites e vicissitudes da subjetividade.
O modelo de subjetividade consagrado pela modernidade é fruto da
construção de uma estrutura identitária que compreende o indivíduo como ser
eminentemente racional. “O termo subjetividade é o indicador ou
denominador excelente para a época da história da filosofia que se convencionou
de chamar de ´filosofia moderna´. De tal período pode-se dizer que, entre os
historiadores da filosofia, há um consenso em localizar seu início no século
XVII, tendo o nome de Descartes funcionado como metonímia ou simplesmente
sinônimo dessa inauguração. Quanto ao fechamento ou ao fim desta, entretanto,
semelhante consenso parece longe de ter se configurado: enquanto uns o situam
no século XIX – em Hegel, ou mais tardiamente e por outros critérios, em
Nietzsche – outros prolongam-no pelo século XX adentro, na medida em que não
poucos doutrinadores contemporâneos podem ainda ser considerados como que em
´sintonia espiritual´, por assim dizer, com os principais pensadores da
modernidade” (Bicca, 1997 p. 145 )
Contemporaneamente,
as fórmulas identitárias que fundamentam a subjetividade sobre modelos
meramente racionais consagradas pela modernidade demonstram certo esgotamento.
A constatação dos efeitos da fragmentação do indivíduo, até então compreendido
como um “sujeito unificado”, põe em xeque a estabilidade das referências que
orientam tradicionalmente a vida social. Este processo, chamado por Stuart Hall
de “descentramento”, impõe uma multiplicidade de estratégias
metodológicas para a compreensão do papel da ciência e da razão no
contexto da pluralidade social contemporânea. Para Hall, dentre as forças de
descentramento que operam na subjetividade do indivíduo racional moderno estão
aquelas manifestações situadas no inconsciente e na ideologia (Hall, 2003). Daí
a importância da contribuição das aproximações do direito com a história, com a
psicanálise e com a linguística.
A tradição
que enfatiza o tecnicismo e cientificismo como forma predominante de
aproximação da realidade, é amplamente consagrada no âmbito das ciências
naturais refletindo-se com intensidade também nas ciências humanas com a pretensão de “matematização” do
conhecimento e a utilização de modelos formais para a avaliação da correção de
juízos e aferição de sua credibilidade. No contexto específico do direito, o
pensamento moderno procurou construir um referencial teórico no sentido de
caracterizar a atividade decisória, sobretudo em sede jurisdicional, como um
procedimento essencialmente racional, imune por isso a quaisquer influências de
índole subjetiva ou ideológica. Seja no modelo subsuntivo próprio do
positivismo legalista, seja no modelo normativista de índole kelseniana, a pretensão
de racionalidade sempre esteve presente como baliza fundamental. Claro, aqui
não podemos esquecer que Kelsen, ao separar as ideias de ciência e norma,
atribui ao intérprete um papel certamente político, valorizando em grande
medida a sua subjetividade. Nesse sentido, a decisão do intérprete seria
válida, não exatamente por ser fruto de uma técnica ou de um modelo específico
de racionalidade, mas por atender a uma dupla exigência: de um lado, por ser
proferida por uma autoridade cuja subjetividade é “imunizada” pela norma
fundamental; por outro lado, por estar delimitada pela “moldura” oferecida pela
ciência do direito.
Não
obstante, há uma certa insistência, no âmbito da dogmática jurídica, em
restringir o reconhecimento da dimensão política ao processo de criação de
normas gerais pelo parlamento, restando ao poder judiciário como tarefa
específica a missão de interpretar “técnica” e “racionalmente” o texto criado
pela instância legislativa.
Os
problemas de ordem prática que decorrem desta concepção podem ser verificados
quando voltamos o olhar para a atividade judicial, e percebemos o elevado grau
de ingerência política em temas que pela sua específica natureza, apresentam
como espaço natural de deliberação a instância parlamentar. Aí estão as
questões relativas aos “ativismos”, demonstrando as dificuldades decorrentes da
articulação entre direito e política. Ainda que a jurisdição seja uma instância
onde claramente percebemos a dimensão da conflituosidade em uma sociedade,
chama a atenção a presença recorrente do argumento da racionalidade como
estratégia de naturalização do conflito e legitimação da decisão. Nesse
sentido, é curioso perceber que certas palavras apresentam um poder especial do
ponto de vista argumentativo. Dentre estas fórmulas mágicas encontramos como
verdadeiros avatares da racionalidade, expressões como “razoabilidade”,
“ponderação”, “proporcionalidade”, “dignidade humana” e afins, como se fossem
conceitos auto-evidentes. Como se não demandassem nenhum esforço
argumentativo suplementar. Não é à toa que John Austin percebeu a
possibilidade de realizar ações apenas enunciando palavras...
Aqui, cabe
por fim evidenciar que a missão da Teoria do Direito é oferecer um modelo
explicativo suficientemente capaz de lidar com a questão da subjetividade no
direito. Isto passa em grande medida, pelo reconhecimento de uma dimensão
tradicionalmente negligenciada pelos estudos jurídicos e em certo sentido
simplesmente rejeitada e tida por irrelevante, muitas vezes em nome da crença
de um certo poder mágico da possibilidade de geração de legitimidade unicamente
a partir da autoridade da norma (ou de quem a enuncia).
REFERÊNCIAS
BICCA, Luiz. Racionalidade Moderna e Subjetividade. São Paulo: Loyola, 1997.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei –
O Fundamento Místico da Autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio – no Movimento dos
Sentidos. Campinas: Editora UNICAMP, 2015.
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João Paulo Allain Teixeira
é Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica
de Pernambuco (UNICAP) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro e
líder do grupo de pesquisas REC CNPq – Recife Estudos Constitucionais.
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