EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO PRESIDENTE DA
REPÚBLICA.
- A natureza política do processo por crime de responsabilidade praticado
pelo Presidente da República não resulta um cheque em branco ao Congresso, que
deve exercer tal poder, como todos os demais poderes definidos em um Estado
Democrático de Direito, nos limites traçados pela Constituição.
- Apenas podem ser caracterizados como crimes de responsabilidade atos
dolosos diretamente atribuíveis ao Presidente da República.
- É incompatível com a Constituição a condenação, no exercício do mandato,
do Presidente da República, por crime de responsabilidade, por ato cometido em
mandatos anteriores.
O Problema
Nos últimos dias, a imprensa tem noticiado a existência de um conjunto de petições,
apresentadas à Câmara dos Deputados, de crime de responsabilidade da Presidenta
da República. Muitas delas foram rejeitadas. Porém, uma delas foi recebida e
processada, dando início, na Câmara, à discussão sobre a possibilidade de a
casa do povo autorizar o Senado Federal a abrir o processo por crime de
responsabilidade.
Diante dessa
conjuntura política vivida pelo país, este estudo examina a possibilidade jurídica
de processamento de impeachment da Presidenta da República, considerando os aspectos
formais e materias para a responsabilização do Chefe de Estado e de Governo,
considerando as normas de regência constitucionais atinentes à matéria.
Nossa discussão sobre o tema ficará circunscrita a três questões, que entendemos hoje controversas:
a) as conseqüências da natureza política do processo por crime de
responsabilidade; b) a natureza pessoal e o dolo no ato a ser considerado crime
de responsabilidade; c) a possibilidade de impeachement baseado em fatos
ocorridos em mandato anterior.[1]
Natureza política dos
crimes de responsabilidade
As formas de responsabilização do Presidente da República no Brasil são mais restritas do que em
outros países. Aqui, temos apenas a responsabilização do Presidente por crimes,
dividindo a Constituição os crimes em dois tipos: crimes comuns e crimes de
responsabilidade.
O nosso “crime de responsabilidade” não se confunde com a figura da
responsabilidade por “mal exercício do cargo”, como na Constituição do
Paraguai, de 1992. Nesse país, o art. 225 da Constituição prevê a submissão do
Presidente da República ao juízo político por "mal desempeño de sus funciones, por delitos cometidos en el ejercicio de sus
cargos o por delitos comunes".
Não se confunde, também, o "crime de responsabilidade" com a
figura do recall, ou seja, com possibilidade de revogação do mandato,
que existe, em relação ao Presidente da República, na Venezuela. A Constituição
desse país, em seu art. 72, prevê que quaisquer cargos eletivos são passíveis
de referendo revocatório, bastando que exista pedido de vinte por cento do
eleitorado e que, no referendo, a revogação receba mais votos do que aqueles
que foram dados ao eleito.
Os dois casos são de responsabilização política aberta. O juízo que é feito para o
afastamento do Presidente é exclusivamente político.
Essas hipóteses citadas diferem em muito do nosso “crime de responsabilidade”.
Apesar de serem infrações de natureza político-administrativas, os Crimes de responsabilidade
têm seus tipos específicos definidos em Lei. Pontes de Miranda, comentando a
Constituição de 1967 afirma que “no sistema jurídico brasileiro, em que a
palavra impeachment se evidencia inadequada, os crimes de
responsabilidade, no Império e na República, são crimes, são figuras
delituais penais”[2]. A expressão “crime de responsabilidade” vem, de fato, do Código Criminal
do Império, mas que determinava a sua não aplicação para Ministros e
Conselheiros do Estado (art. 308 da Lei 16, de dezembro de 1830). Atualmente,
já se sabe que o chamado crime de responsabilidade não é uma infração penal
comum, mas sim uma infração de caráter político-administrativo. Isso não quer
dizer que haja uma abertura para a sua tipificação. Muito ao revés, pois a
utilização do próprio nome “crime” já sugere a necessidade de configuração da
legalidade estrita na tipificação da conduta. Ou seja, não é possível aos
órgãos que processam e julgam o crime de responsabilidade analisar abertamente
a conduta da autoridade, devendo sim identificar, de maneira clara e segura, a
configuração do tipo legal.
Entender o contrário, admitindo que qualquer ato de gestão, submetido a uma interpretação
nova, pode resultar no impedimento, seria consagrar uma poder amplo ao
Parlamento de apenas admitir governos chancelados por sua maioria. A política
cotidiana passaria a conviver com uma perigosa insegurança quanto ao que pode
ou não ser utilizado como razão para o impedimento do Presidente.
Nem a consagração de um ato como ilegal ou inconstitucional é razão suficiente para o impedimento.
No dia a dia da Administração, atos - muitos deles editados pelo próprio Chefe
do Executivo - são declarados pelo Judiciário ilegais ou inconstitucionais. Em
torno deles, existiam diferentes interpretações, até então. Não é razoável ver
um crime de responsabilidade em cada ato do Chefe do Executivo que, após essas
divergências quanto a legalidade/ilegalidade, ou constitucionalidade/inconstitucionalidade,
venha a ter interpretação pacificada pelo Judiciário em desacordo com o que
praticava a Administração.
Seria a edição de uma medida provisória posteriormente declarada inconstitucional um
crime de responsabilidade do presidente? Seria a edição de um decreto que,
posteriomente, o Congresso sustasse por entender ter o Presidente exorbitado o
seu poder regulamentar (art. 49, V, da Constituição da República) um crime de
responsabilidade? É evidente que não. A legalidade/constitucionalidade de atos
do Chefe do Executivo presumem-se constitucionais e é o próprio sistema estrutura
meios de impugnação dessa presunção, que podem resultar em uma declaração de
ilegalidade/inconstitucionalidade do ato, sem que sua edição represente um
crime de responsabilidade.
Ainda mais grave é a situação de atos que não foram impugnados em sua legalidade/inconstitucionalidade,
surgindo tal questionamento exatamente quando da acusação de cometimento de
crime de responsabilidade. O processo por crime de responsabilidade não pode
ser a arena adequada para verificar originariamente a legalidade/constitucionalidade
de atos do Chefe do Executivo. É preciso que tal
ilegalidade/inconstitucionalidade já seja evidente, desconstituída, pelos
caminhos adequados, sua presunção de legitimidade.
Ao atribuir ao Senado Federal a
competência para julgar o Presidente da República por crimes de
responsabilidade, o Constituinte de 1988 não criou um poder arbitrário. Não deu
ao Senado o poder de livremente condenar o Presidente da República pelos fatos
e pelas razões que tiver por bem tomar em consideração.
Esse poder deve ser exercido, como
qualquer outro poder em um Estado Democrático de Direito,
dentro dos limites traçados pela Constituição. Nos comentários à Constituição
de 1946, Pontes de Miranda relembra lição de João Barbalho sobre a
responsabilidade do Presidente da República na Constituição de 1891, que, em
seu art. 54, definia, como a vigente Constituição define, crimes de
responsabilidade como os que atentassem contra determinados princípios
constitucionais:
aplicou ao acusado o salutar princípio que se lê no seu art. 72, §15, e no
art. 1o do Código Penal. E tirou, quer à Câmara dos Deputados, quer ao Senado,
todo o poder discricionário que nisto de outro modo lhes ficaria pertencendo.
Deste feitio, ficou consagrado que o presidente denunciado deverá ser
processado, absolvido condenado, não absque lege e por meras considerações
de ordem política, quaisquer que sejam, mas por procedimento de caráter
judiciário, mediante as investigações e provas admitidas em direito, e julgado secundum
acta et probata. E de outro modo detupar-se-ia o regime presidencial,
podendo as câmaras, sob qualquer pretexto, demitir o presidente; dar-se-ia
incontrastável predomínio delas. A posição do chefe da nação seria coisa
instável e precária, sem independência, sem garantias[3].
Ainda citando João Barbalho:
Tudo que pode enfraquecer o direito que o presidente tem ao respeito do
povo, quebrar as barreiras que o cercam, fazê-lo joguête de maiorias
ocasionais, tende a destruir nosso govêrno e prejudicar a liberdade
constitucional.
A natureza limitada desse poder deve
ser traduzida em um cuidado especial na apreciação das acusações. O próprio recebimento da denúncia, que já tem a drástica
consequência do afastamento do Presidente, precisa estar alicerçada em fatos e
elementos probatórios que exale certa segurança quanto a não se tratar de um
mero uso político-partidário do
instituto da responsabilidade política do Presidente.
Nesse sentido, Augusto Saboia da
Silva Lima foi preciso, ao não receber, na década
de 40, denúncia contra Prefeito do Distrito Federal:
O lmpeachment é remédio para as horas
criticas, quando a proteção dos interêsses públicos se vê ameaçada pelo abuso
exagerado do poder oficial, negligência do dever e
conduta incompativel com a dignidade do cargo.
Nestas condições, o simples
recebimento da denúncia, no lmpeachment, reveste-se da máxima importância, sem embargo de não implicar em
julgamento.
Na atmosfera política, particularmente
marcada pelas paixões, os homens encarregados dos postos de
comando se expõem facilmente aos gestos sectários, que visam ao
seu desprestigio ou ao seu afastamento, apenas como um golpe próprio do jôgo politico.
Em tais circunstâncias, o simples
recebimento da denúncia, por isso que marca o início do processo
investigatório, alcançando, como sempre
acontece, larga ressonância no espirito público, é, muitas vêzes, suficiente para
atender aos objetivos visados pelos seus autores. Dai o fato de que a aceitação da denúncia nos crimes de
responsabilidade escapa à rotina judiciária, para assumir o
caráter de uma grave
decisão, que o juiz não pode proferir sem
um lúcido exame da ocorrência jurídica e sem levar em
conta a sua própria sensibilidade em face do drama da
vida pública.
Somente assim poderá evitar que o impeachment, instituição que assegura aos
governados o decôro e a honestidade dos governos, sofra
uma inversão perigosa nos seus fundamentos e nos
seus fins, transformando-se em arma demagógica, facilmente
manejável apenas para
servir aos sentimentos tendenciosos que envolvam a arena partidária.
Não devem ser recebidas
as queixas nos crimes de responsabilidade que não estejam vazadas em
têrmos os mais nítidos, com a exposição precisa dos delitos
e das penas, e sobretudo com a indicação de fatos a que o
consenso público ligue, imediatamente, a idéia de crime, de ação criminosa, de uma
conduta prejudicial aos interêsses públicos e incompatível com a dignidade
do cargo.
Receber a denúncia, e, conseqüentemente, aceitar
como passíveis de conceituação criminosa os atos
de um govêrno, por excedentes
do seu poder de regulamentar atos, portanto, decorrentes apenas de uma
interpretação jurídica, cuja justificação pública lhes retira
qualquer intuito aleivoso, de capricho ou de usurpação, atos, enfim,
praticados tendo em vista um bem comum evidente, importaria em transplantar
para a Justiça as competições e as parcialidades
que pertencem à esfera própria das pugnas
partidárias[4].
Esse juízo de
admissibilidade, feito, em um primeiro olhar, pelo Presidente da Câmara, já
precisa aferir se petição não é inepta e se há “justa causa”, análise para além
de aspectos formais do petitório, como definiu o Supremo Tribunal Federal:
Impeachment do
presidente da República: apresentação da denúncia à Câmara dos Deputados:
competência do presidente
desta para o exame liminar da idoneidade da denúncia popular, 'que não se reduz à verificação das formalidades extrínsecas e
da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender (...) à rejeição imediata da
acusação patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se ao
controle do Plenário da Casa, mediante recurso (...)'. [5]
De fato, a
caracterização do crime de responsabilidade como uma infração de jaez
político-administrativo não pode gerar instabilidade no processo de sua
configuração a ponto de desconsiderar a tipicidade precisa consubstanciada na
identificação clara da subsunção do fato ao texto normativo legal que
disciplina os “tipos” do crime.
Tanto é verdade que
as expressões vagas contidas no art. 85 da Constituição Federal de 1988 (como, v.g.,
atentar contra a Constituição Federal) não seriam, de per si, suficientes para fazer deflagrar um processo
por crime de responsabilidade. Há a necessidade de definir o tipo. Ou seja,
imaginando que, por hipótese, não houvesse sido editada a Lei 1079, de 1950,
não poderia o Senado Federal ter como base unicamente o texto do artigo 85 da Constituição Federal
para o julgamento de crime de responsabilidade. Quer-se com isso afirmar que,
sem a identificação clara e precisa dos tipos lançados na legislação
infraconstitucional, não seria possível justificar a punição do agente
político.
Portanto, advogar a
tese segundo a qual o juízo político faria pressupor a desnecessidade de
identificação precisa de um tipo específico para a caracterização do crime de
responsabilidade equivale a tornar a figura do Presidente da República um refém
do Poder Legislativo na abertura interpretativa que poderia dar ao considerar presente
a ocorrência do “crime” de responsabilidade. Mas, de fato e de direito, a
caracterização do crime de responsabilidade
traz consigo a ideia de tipicidade emprestada do direito penal.
A responsabilidade pessoal e a
necessidade de dolo no “crime de responsabilidade"
Não há, em nosso ordenamento, a figura do crime de responsabilidade culposo,
nem a responsabilização do Presidente da República por todo e qualquer ato
praticado pela Administração.
Como se sabe, o Direito Penal é marcado pelo princípio da excepcionalidade do crime culposo. Silente o
legislador quanto à forma de punição da modalidade culposa, só haverá crime quando
constatado o dolo.
Isso ocorre também, analogicamente, com o chamado “crime de responsabilidade”. A Lei n.
1.079/50, que define os crimes de responsabilidade não faz qualquer menção
expressa à modalidade culposa.
É necessário que seja apontada uma ação específica do Presidente da
República, que incorra em uma das condutas explicitadas na citada Lei, para que
seja caracterizado o crime.
Não é a mera ocorrência de uma ilegalidade em algum órgão da Administração que caracterizará
o crime de responsabilidade. É preciso que o Presidente da República tenha
diretamente praticado um ato definido em Lei como crime de responsabilidade e
que o tenha feito dolosamente. Isto decorre do caráter sancionador da Lei 1079,
de 1950.
A Administração
pública federal é uma estrutura complexa, com diversas fontes de decisão, sem
as quais não seria possível atender a contento as diversas demandas que são
cotidianamente dirigidas à União. Atribuir ao centro do Poder, à figura do
Presidente da República, a responsabilidade política por todos os atos, a ponto
de fundamentar a perda do mandato legitimado nas urnas seria uma subversão perigosa
do regime constitucional da responsabilização do Chefe do Executivo.
Nas acusações veiculadas na imprensa e que têm fundamentado os pedidos já
apresentados, não vislumbramos nenhuma hipótese prevista na Lei n. 1079/50.
Genéricas referências a atos de corrupção na Administração federal não
fundamentam um impedimento presidencial. Também não nos parece sustentável uma
acusação baseada naquilo que a imprensa tem chamado de “pedaladas fiscais” -
prática que consistiu em atrasos nos repasses a bancos públicos que pagavam
beneficiários de programas sociais, caracterizando, na visão do Tribunal de
Contas da União, um empréstimo não autorizado. No caso, houve recomendação,
pelo Tribunal de Contas da União, de não aprovação das contas presidenciais,
ainda pendente de análise pelo titular do poder de fiscalização, o Congresso
Nacional.
Mesmo que, no caso das chamadas “pedaladas fiscais”, o Congresso Nacional resolva não aprovar as contas,
ainda não estaria caracterizado o crime de responsabilidade. É necessário que
seja associada tal prática a uma ordem presidencial, uma deliberada ação
tendente a fraudar a legislação sobre finanças públicas. Essa caracterização é
difícil, já que, até este ano, não havia qualquer tipo de reprimenda por parte
do Tribunal de Contas para outros casos idênticos de atraso de repasses. Apesar
de haver sido reconhecida a ilegalidade, não houve a caracterização do dolo da
autoridade presidencial representado pela intenção de fraudar, sem esquecer que
a ilegalidade reconhecida a partir da análise das contas pelo TCU não remete à
consequência lógica da perda do mandato pela caracterização de crime de
responsabilidade. Ademais, a recente aprovação do PLC 05/2015 terminou por gerar a adequação das práticas contábeis do governo, razão pela qual, também sob esse aspecto, não merece prosperar a tentativa de caracterização de eventual crime de responsabilidade.
Se a lei do Impeachment possui caráter nitidamente sancionador, a configuração do elemento volitivo
intencional passa a ser determinante para a caracterização do crime de
responsabilidade.
Nesse ponto, pode-se,
inclusive, fazer uma analogia com a configuração da improbidade administrativa
(até mesmo porque a probidade na administração é uma das hipóteses abstratas
indicadas como crime de responsabilidade). A jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça assim assinala no Recurso Especial 734.984-SP:
RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI
8.429/92. AUSÊNCIA DE DOLO. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO.
1. O ato de improbidade, na sua caracterização, como de regra, exige
elemebto subjetivo doloso, à luz da natureza sancionatória da Lei de
Improbidade Administrativa.
2. (omissis)
3. É que “o objetivo da Lei de Improbidade é punir o administrador
desonesto, não o inábil. Ou, em outras palavras, para que se enquadre o agente
público na Lei de Improbidade é necessário que haja o dolo, a culpa e o
prejuízo ao ente público caracterizado pela ação ou omissão do administrador público” (...) A finalidade da Lei é pubir o
administrador desonesto(...)”
É assente na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal que o agente político não se submete à Lei de
Improbidade, justamente por se submeter à Lei do Impeachment. Mas,
materialmente, as condutas são as mesmas. As duas leis são sancionatórias. E,
assim como para a improbidade, para a punição pelo crime de responsabilidade da
Lei 1979, de 1950, também se exige a conduta dolosa, pois visa-se punir o
administrador desonesto, e não o inábil.
Até o momento, não há indicação de
ato presidencial que possa ser caracterizado como um ato deliberadamente
intencional voltado à prática da desonestidade. Não há o ato pessoal (da Presidenta)
e doloso (intenção de fraudar), razão pela qual não se pode afirmar, por ora,
que há a caracterização do crime de responsabilidade que possa ensejar a
autorização da Câmara dos Deputados para a abertura do processo de impeachment
no Senado Federal.
Atos estranhos no
tempo
Um outro ponto de
relevo que deve ser destacado diz respeito à chamada “clausula de irresponsabilidade
relativa” prevista no art. 86, § 4º, que assim prevê:
O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao
exercício de suas funções.
O texto da Constituição faz referência expressa à responsabilização “na vigência de seu
mandato”.[6]
Os textos doutrinários quando tratam da responsabilidade do Presidente da República tradicionalmente
referem-se à figura dos “atos estranhos” - em relação aos quais o Presidente
não é responsabilizado durante o mandado - por seu conteúdo, por sua matéria.
Assim, entendem que não responde o Presidente da República por atos que não
tenham ligação direta como exercício da função presidencial, ou seja, por
crimes não funcionais.
Essa forma mais restrita de analisar
o tema decorre do fato de que, até 1998, não tínhamos
no Brasil, ainda, a reeleição presidencial. Assim, não era colocada a questão
da aplicabilidade aos chamados crimes de responsabilidade e, consequentemente,
não era discutido o problema temporal na análise dos “atos estranhos”.
É preciso, para a correta compreensão do instituto, ressaltar que essa exclusão
é aplicável, em tese, a todas as formas de responsabilidade do Presidente e não
apenas em relação à responsabilidade por crime comum. Veja-se que o texto
constitucional fala em responsabilidade por “atos".
Com a reeleição institucionalizada, é necessário colocar em discussão a questão dos
atos estranhos no tempo, ou seja, os atos que não foram praticados no mandato,
mas em mandato anterior. Seria possível condenar o Presidente reeleito por um
ato praticado no mandato anterior?
O absurdo de uma possível resposta positiva fica mais claro quando pensamos em um presidente não
reeleito, mas que retorna à Presidência em novas eleições, após um mandato de
seu sucessor. Ainda não “prescrito" o crime, poderia ser responsabilizado
em processo de impeachment por ato que praticou há dois mandatos, quando foi
pela primeira vez Presidente da República?
O processo eleitoral seria uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”. Teríamos a figura do presidente
eleito já marcado, antes mesmo de sua posse, para perder o mandato.
Esta situação deve ser tratada da mesma forma que o caso de um mandato subsequente ao
no qual se deu o possível crime de responsabilidade. Um novo mandato deve ser
tratado como uma unidade independente, respondendo o titular do cargo por atos
praticados nesse novo momento.
Conclusão
Diante das análises que apresentamos,
concluímos que o processo e o julgamento do Presidente da República por crime
de responsabilidade, no Brasil, apesar da natureza política do órgão
competente, está subordinado a um conjunto de parâmetros constitucionais, não
gerando um poder ilimitado para o órgão que autoriza (a Câmara dos Deputados) e
para o órgão que julga (o Senado Federal), havendo a necessidade de ser
demonstrado qual foi o ato e, mais, que esse ato foi cometido dolosamente pelo
titular do cargo.
Ainda, quanto ao aspecto temporal, apenas
atos cometidos na vigência do mandato no qual se dá a acusação podem ser
considerados para fins de responsabilização político-administrativa.
Portanto,
não identificamos a caracterização de qualquer ato pessoal e direto da
Presidenta da República que possa configurar o crime de responsabilidade, razão
pela qual, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, “a
competência do Presidente da Câmara dos Deputados (...) para recebimento, ou
não, de denúncia no processo de impeachment não se restringe a uma admissão
meramente burocrática, cabendo-lhes, inclusive, a faculdade de rejeitá-la, de
plano, acaso entendam ser patentemente inepta ou despida de justa causa”.
Estando
ausente a justa causa para deflagrar o início do processo, reputamos
inconstitucinoal o prosseguimento do procedimento instaurado na Câmara dos
Deputados para a finalidade de autorização do processo de crime de
responsabilidade.
Recife, 5 de novembro de 2015.
[1] Este estudo pro bono possui natureza
academicista-jurídica
[2] MIRANDA, Pontes. Comentários à
Constituição
de 1967 com a Emenda Constitucional 1/69,., 2a ed., Tomo III. São
Paulo:. RT, p. 355
[3] MIRANDA, Pontes. Comentários
à Constituição de
1946. Vol II. 2a Edição, revista e aumentada. São
Paulo: Max Limonad, 1953, p. 421.
[4] LIMA, Augusto Sabóia
da Silva. Crime de responsabilidade - denúncia
contra o prefeito do Distrito Federal - impeachment, Jurisprudência dos Tribunais, Revista de Direito
Administrativo, v. 14 (1948), -p. 295
[5] MS 20.941-DF, Sepúlveda Pertence, DJ de 31-8-1992." (MS 23.885, rel. min. Carlos Velloso, julgamento em
28-8-2002, Plenário, DJ de 20-9-2002.) Vide: MS 30.672-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em
15-9-2011, Plenário, DJE de 18-10-2011.
[6] Apesar do entendimento esposado pelo
STF no Inq 672-QO, não há qualquer exegese que restrinja a aplicação do disposto no art. 86, § 4º, apenas às infrações penais comuns, podendo a tal cláusula de irresponsabilidade relativa ser utilizada para o
caso de atos “pré-mandato” que caracterizem, em tese, a prática do crime de responsabilidade. Tal afirmação se torna mais robusta na medida em que o próprio crime de responsabilidade, dada a sua natureza político-administrativa, apenas pode ser praticado por aquele
que esteja no exercício da função, o que reforça a tese segundo a qual os atos pré-mandatos não podem ser utilizados
para a responsabilização do agente político em processo de impeachment.
[7] Professor de Direito Constitucional da
Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de
Pernambuco (licenciado). Mestre (UFSC) e Doutor (UFPE) em Direito. Pós-Doutorado
na Universitat de València. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq. Procurador do Município do Recife. Membro do grupo REC/CNPq – Recife Estudos Constitucionais.
[8] Professor de Direito Constitucional da
Universidade Católica de Pernambuco. Mestre e Doutor em Direito
(UFPE). Pós-Doutorao na Universidade de Pisa. Membro do grupo
REC/CNPq –
Recife Estudos Constitucionais.
[9] Professor de Direito Constitucional da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e de Filosofia do
Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Mestre e Doutor em
Direito. Coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Membro do grupo
REC/CNPq –
Recife Estudos Constitucionais.
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